Um Natal especial
Recordando anos atras.
Todas as manhãs mamãe me perguntava:
– “Que dia é hoje Mirinha?”
E eu explicava quando era alguma festa:
– “Hoje é Páscoa – vamos tomar café com leite e colomba, carnaval – vamos assistir escola de samba, dia de São Pedro – fiz pipoca, Natal – vamos tomar café com leite e panetone; Ano Novo – vamos fazer pensamento positivo que este ano será muito melhor”…
Para ela todos os dias eram iguais, para mim também. Todos os dias eu ficava durante a noite acordada ouvindo mamãe delirar; levantava muito cedo e trocava lençol, edredom, fronhas, pijama… levava tudo para a máquina de lavar, porque a fralda não conseguia conter o xixi, dava banho,escovava os dentes e fazia o café enquanto ela “batia um papinho com a Ana Maria Braga”.
Não existe dia de festa para quem cuida e para quem tem Alzheimer, os dias são apenas uma sucessão de horas intermináveis e angustiantes.
Nosso último Natal foi no hospital, mamãe estava com infecção urinária e se recusava a tomar o remédio, deixava o comprimido no canto da boca e quando a enfermeira saia do quarto jogava ao lado da cama. Só descobri isso depois de quase uma semana de internação.
No dia 24 ficamos assistindo a queima de fogos da janela do hospital. Eu olhei para minha velhinha e meu coração desejou Feliz Natal, comum nó na garganta.
Às vezes o amor é tão dolorido que nem parece uma bênção.
O Alzheimer era imenso, mas a imaginação e o Amor são mais poderosos do que qualquer doença e limitação deste mundo, e eu fiz nosso último Natal no dia 1 de janeiro junto com o Ano Novo.
Saímos do hospital no dia 31 de dezembro, antes de chegar em casa perguntei para mamis:
– Amanhã é Natal o que a senhora quer fazer?
– Natal? Que maravilha! Quero sorvete de coco, pão de milho, salaminho e café com leite.
Pronto! Nossa ceia estava organizada. Passei na padaria e comprei tudo que ela pediu e fomos para minha casa.
Assim que chegou pediu para deitar porque estava muito cansada, arrumei a cama e avisei:
– Se prepara porque vamos fazer a maior ceia de Natal, que este planeta já viu.
– Natal? Que maravilha! O que nós vamos comer?
– Surpresa minha velha. Vou fazer uma comida especial.
Os olhos dela brilharam como de uma criança gulosa, eu senti que o Amor estava vencendo o meu desespero e fui preparar nosso Natal, enquanto ela dormia.
Fiz uma ceia com tudo que eu sabia, salada de alface com tomate e cebola, carne moída com azeitona e muita uva passa no arroz. Preparei a mesa com salaminho, taça colorida para o sorvete, vaso com flores do jardim,amendoim, pão de milho, guaraná, mandioca frita, batatinha frita, banana frita,(tudo que ela amava e eu sabia fazer) e guaraná com rodela de laranja no copo mais bonito que eu tenho.
Os fogos começaram e mamãe acordou assustada:
– Mirinha o que está acontecendo?
– Natal mãe! Feliz Natal minha velha!
– Natal? Que maravilha!
Troquei a fralda, coloquei a roupa bonita, penteei minha velhinha e passei perfume. Enquanto cuidava dela, seus olhos brilhavam e meu coração parecia minguar, mas não podia permitir que ela percebesse aquela dor que me sufocava.
Coloquei na cadeira de rodas e chegamos na sala. Ela bateu palmas, como uma criança feliz, quando viu nossa mesa de Natal.
– Oba!!!!! Quanta delicia!!!!!
A alegria dela me encheu de coragem para continuar nosso Natal sem chorar, aproximei a cadeira da mesa e ela começou a pegar salaminho e amendoim.
– Nossa, quanta delicia!
– Coloca amendoim no pão de milho para ver que delícia.
Ela encheu de amendoim uma fatia de pão e repetia:
– Huuummmmm que delícia!
Comecei a relembrar nossos natais quando eu era criança, ela me contou as mesmas histórias e eu ouvi, como se fosse a primeira vez. Aos poucos começamos a resgatar nossa história e o Amor brotava como relva em tempo de chuva.
Ela estava feliz e eu precisava saborear essa felicidade, porque sabia que ela me alimentaria para o resto da minha vida.
– E agora o prato surpresa…
Trouxe o prato mais bonito com arroz, uva passa, carne moída e banana. Enfeitei com tomate e ela continuou com seu “Huuummmm delicia!”
Então eu trouxe a próxima surpresa, que arrebentaria o coração da minha velhinha.
– Atenção…
Coloquei a travessa com mandioca e batata frita sobre a mesa.
– Nossa quanta delícia.
A cada sorriso eu sentia que meu corpo era tomado por uma emoção, que nunca mais sairia da minha Alma. Ela estava radiante e eu sentia o sabor amargo da despedida, da saudade antecipada e do Amor mais dolorido que conheci na minha vida.
Comemos e nos saboreamos.
Começou a queima de fogos e fomos para a varanda, ela me abraçou:
– Obrigada filha, por tudo! Feliz Natal!
Abracei apertado minha velhinha e fui para o banheiro chorar. Lavei o rosto e continuamos nossa festa.
Aquele foi nosso último Natal, e a emoção que vivemos juntas me ensinou que não existe em todo o Universo, força maior do que o Amor. E esse amor me acompanha todos os dias da minha vida, como uma bênção eterna e minha velhinha me ajuda, todos os dias, a celebrar a Vida e o Amor.
Até o próximo encontro!
Míriam Morata
Arquiteta, formou-se em filosofia, mestre em Ciência da Religião e pós graduada em Arquitetura Sustentável.
Presidente da ONG recriar.com.você, onde faz pesquisa sobre materiais e sistemas construtivos sustentáveis de baixo custo e hortas urbanas.
Escritora dos seguintes livros:
“Alzheimer diário do esquecimento
“Alzheimer – recolhendo os pedaços
Link para comprar os livros (obs. Não distribuímos em livrarias)
https://www.facebook.com/miriammnovaes/photos/a.126999327956023/256429061679715/?type=3&theater
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